20 setembro 2010

Ar de vida...

Há recantos capazes de nos aproximar ao nosso mais íntimo mar, sem que nos percamos no emaranhado de linhas do horizonte.
Recantos onde se estabelece o encontro sempre que os momentos de diálogo precisam ser restabelecidos.
Era uma espécie de esconderijo com uma vista surpreendente e privilegiada para o mar.
De entre rochedos, vislumbravam-se estrelas que vagueavam no céu e experimentava os salpicos salgados das ondas mais intrusas…
Na mais perfeita miragem deixo-me levar e conduzo-te nesta delicada invenção.
Prostramo-nos num banco de madeira a contemplar as dádivas da natureza...
Vais desviando a atenção entre a frontalidade do mar e a invulgar luz das estrelas cadentes que num ápice desaparecem.
Mal dá tempo para pedir um desejo…
Mas ao ouvido, sussurras-me desejos que esperas ver cumpridos...
Escuto, atenta... E vagarosamente deixo-me levar pela respiração que arfa no meu ouvido e que escorre pelo pescoço...
Os lábios tocam-se com a mesma brandura dum véu singelo que cobre um corpo despido. Mergulhamos num beijo de intensidades obtusas…
Os braços entrelaçaram-se num laço eterno...
Como se estivéssemos a embrulhar aquela noite no nosso presente.
A intranquilidade do momento restabelecia o sossego em duas almas abandonadas.
O nosso ar fundia-se em vida.
Se existia, estaria desfasada e ainda mais perdida de nós.
A avidez do momento fez esquecer todas as imagens de rostos incapazes de resistir às melindrosas paredes duma casa com fissuras e brumas enterradas numa atmosfera gélida e desabitada.
O êxtase do momento recriava um acordar em que o ar que se respira é o mesmo…
Num calor indescritível. Sentimos o ar transplantar-se entre nós. O teu ar era o meu ar…
Finalmente respirava.

10 setembro 2010

Este meu desassossego...

Estranho cada pluma que se enroscou no meu peito.
Estranho a cor, o cheiro, o brilho.
E não lhe atribuo qualquer significado...
As camadas de brilhantina no cabelo fazem escorrer ou viajar o tempo.
As sombras nos olhos, o rímel negro poderoso, as maçãs do rosto rosadas…
O vestido marca uma silhueta feminina uniforme…
Cobre a pele como se de uma segunda se tratasse…
Os saltos fazem crescer a voluptuosidade do momento…
Sobem-se as escadas e diante de desconhecidos rostos…
Abre-se o pano, acendem-se as luzes, dando lugar o espectáculo…
A sombra está ao meu lado no palco.
É a única que não me olha com falsas esperanças.
No texto do guião murmuro em monólogo:
Já não tenho palavras que a ti se dirijam… estás longe do meu presente.
E ainda mais do meu pretérito mais que perfeito.
De amores-perfeitos sei pouco, até porque duram pouco…
Erguem-se majestosos até que o tempo os leva à condição.
O que me leva a crer, que mesmo os efectivamente perfeitos, não sejam eternos.
Provavelmente duram uma estação.
Provavelmente a semente não prevê a sua cor.
Provavelmente não sabem que fim é suposto esperar…
Vento, chuva, mão criminosa?
Mão que não deixa a ligação com a natureza perdurar…
Rouba-se uma vida…
Acaba-se com ela.
É esta injustiça que me destrói e me aniquila a alma que me resta.
Assassino de almas.
Assassino de mim…
Num melodrama perverso, morro em palavras e caio matando a minha própria sombra do alto palco.
Espero que o pano feche.
Quero ouvir o burburinho, que me espera esta performance tão intensa, sempre inacabada.
Numa confusão de cenário, som e luzes elevo-me do chão.
Olho o público, confusa e surge uma imensidão de palmas e de ‘bravos’…
Aplaudem-me de pé e sorrio.
Hoje, por mais que queira vou dormir com aquele sorrisinho parvo.
Aquele que verdadeiramente me escalda o peito e me aconchega a alma.
A emoção toma parte pelo olhar…
Choro e rio…
E revejo cada som de aplauso bem como a luz que desponta daqueles rostos iluminados.
Já posso morrer porque já vivi este meu desassossego.

03 setembro 2010

Metade do meu céu...

Sombria a tarde cai, delegando na noite a obscuridade plena…
Uma gota de orvalho percorre a janela vagarosamente deixando para trás um rasto que seca por si.
Lá fora, os meus olhos apagam a focagem das luzes que se perdem no horizonte…
O silêncio é interrompido pelos sons do mundo que acalmam o sossego que ali se prostra.
Longe vai a vontade indefesa de cair no esquecimento das palavras de um livro, que me libertam as emoções…
Uma vela solta o calor de uma qualquer fragrância doce e frutada, iluminando o abecedário cruzado daquelas páginas romanceadas.
O instante remete-me a um embalo de tempo pesaroso.
Semicerram-se as pálpebras e, os contornos da história atravessam o meu inconsciente…
Reinvento personagens, procuro um espaço e um tempo coincidentes…
Atraio palavras para diálogos apaixonados…
Seduzo a natureza a tornar-se a mais harmoniosa…
Crio o tempo das possibilidades sem sombra de interdição.
Mobilizo os afectos… numa chusma de incapacidades para amar.
Com sentidos tão surreais quanto dispersos, que ficam no livro de apontamentos, para as notas de rodapé.
A árvore genealógica não tem raízes, tem inúmeras cicatrizes em relevo…
Entrelaçadas por rancos floridos de esperança e frutos cor de pecado…
As ervas daninhas formam relvados de jardins imprevistos, numa natureza viva e em absoluta comunhão…
O amor incorre na dúvida de se reflectir na vida dos personagens, como se necessário fosse um argumento ou contrato para amar… Nos encontros e desencontros que uma vida vivida é capaz de proporcionar…
A noite cai na perversidade da madrugada e acordo…
Acho que sonhei muito… ou passei por várias imagens fotográficas de intensidade variável…
Nem sempre nos abrimos ao exterior, aos impulsos e desejos mais encobertos…
A vergonha, a negligência, a culpabilidade compensa-nos os sentidos, anestesiando o que deixa de ser a nossa verdade…
Cedo à vulgaridade da letargia do sono e uma vez mais intensifico a disponibilidade para sentir…
No céu, desfaço um aglomerado de nuvens e escrevo o meu nome…
E no limite, aguardo que se complete… a outra metade do ‘meu’ céu...