Há sempre um prazo para acontecer vida. Mas como se
pode sorrir numa circunstância tão inanimada? Laura imaginara vida onde ela já
não existia há muito tempo… Estava por um fio… Sentia-se insuportável por não
conseguir discernir mais os seus actos, mesmo os mais elementares.
“Neste testamento de cegos já não há qualquer luz que
se possa acender. Nenhuma réstia de esperança, apenas uma vontade louca, desenfreada
de morrer e nascer outra vez. E não é isso que fazemos tantas vezes e
ciclicamente? Desta vez não sei deixar-me morrer. É como se me tivesse
dispersado nas fugas criativas”, cismava.
E em meditação, achava que o céu era a alcofa das
almas, pela beleza do amontoado de nuvens doces que se insurgiam num céu cada
vez mais cinzento, que se recusava a chorar e a libertar-se. A sua imensidão
faz crer que todas as almas sejam, noutra esfera, envolvidas no algodão doce
feito nuvem. As viagens têm o dom da abstracção e da multiplicidade de planos.
Observando, os seres que com ela estavam na camioneta,
assistiu à graça de uma miúda de quatro anos que não queria “ir para o céu”, ao
passo que o autocarro subia a encosta, rumo a um miradouro, a avó
perguntara-lhe se não queria tocar nas nuvens, no céu… Ao que ela prontamente
respondeu que não, porque não queria morrer. No calor da idade tinha o
pré-conceito de que “ir para o céu” era morrer.
Um outro comentário a fez acordar da letargia de
existir. Um rapaz do grupo, Jaime, que “fazia retratos”, deliciava-se a
recolher expressões de vida nas excursões que sempre fazia questão de acompanhar.
Gervaz, um septuagenário, ao vê-lo aproximar-se disse-lhe de imediato, “tire-me
um retrato para a campa. Não tenho nenhuma”. Não se sabia se estaria a desejar
a morte ou à espera dela, foi um pedido vulnerável de rendição… Jaime foi
incapaz de negar-lhe o retrato, nunca pensou que um disparo representasse
eternidade, num outro nível, mais mórbido.
No canto, Laura sentara-se em silêncio profundo.
Tentando absorver aquelas duas realidades tão imediatas, tão seguras… Duas
franjas sensíveis de vida. Uma com todos os sonhos do mundo, o outro sem um
único. Mas não ficava por aí, cruzou-se com um diálogo ao telefone que dava
conta de uma senhora que teve uma expressão grotesca: “E não é que ‘fulana’
anda paredes meias com ‘fulano’?” – Nunca ouvira tal coisa, mas pareceu-lhe hilariante
a descrição.
Talvez seja esse o toque das viagens… Mais do que os
sítios que se avistam, as pessoas que os rodeiam. Toca-se assim no infinito,
quebrando-se com tudo o que anteriormente fora adquirido. Por momentos, Laura
abstraíra-se da sua ignóbil realidade. Sempre soubera que enquanto andasse
entretida, tudo o resto passaria ao lado. No limite, sabia que novos horizontes
seriam descobertos, através da permanente escuta dos sons captados dentro da realidade
tão plural em que vivia.