24 setembro 2013

Alquimia sem Dimensões


Esculpir com alma é ser-se embaixador e alquimista dum templo de tentações que resiste ao tempo. Numa odisseia, onde é preciso encomendar com antecedência a felicidade, até garantir um oceano de sensações inteiramente nosso!

É preciso resistir ao tempo… sem saber a duração e o formato da temporalidade…

Locais inesperados fazem – no imaginário – uma mesa para dois. Quando caídos num, avistamos um avião que desenhou uma linha de fumo esbatido no céu, que parecia indicar um caminho que deveríamos seguir. 

De olhos em bico, acabamos por nos (re)encontrar… Lá, onde as mais estranhas naturezas se juntam…

Ou não fosse a rua a melhor sala de cinema dos nossos dias. São inúmeras as fitas na rua… fitas de rua… sem tempo e espaço para acontecerem. Um amplo espectáculo aberto para passageiros ou simples transeuntes, que correspondam aos estímulos de arte! A novos ‘voos’…

No rasto deste fado, o que fica?

Um manto negro. Quiçá uma ardósia, pendurada à porta duma parede velha caiada de branco, com o horário do espectáculo por definir…
De rugas pisadas no rosto, o desfecho é simples de adivinhar e, já foi concretizado em palavras, por Oscar Wilde:
«Adoro as coisas simples. Elas são o último refúgio de um espírito complexo.»

Sim… Entrámos definitivamente noutra dimensão!


20 setembro 2013

Sustento Esperança


Não tenho escrito uma linha. Umas reticências, que seja… Já não há espaço para palavras ocas, estéreis. Há uma resignação pontiaguda que aguça o engenho da inércia, tão assertiva quanto possível ou… ainda mais…

Entrego a sonoplastia dos meus dias, aos ruídos que se cruzam com o caminho onde vagueio, a voz já não se faz ouvir, silenciou-se na hecatombe que me faz percorrer o vazio sozinha e a uma só voz – aquela que já não ouço e à qual já não indago. Quis manter-me à margem de tudo. Porquê? "I've looked at life from both sides now, from up and down and still somehow..." Joni Mitchell, cantava em 'Both Sides, Now'.

A vida é um jardim de formas imprevistas, cuja sombra se projecta a partir de um tecto denso de árvores. Nessa sombra, nem sempre se alcança a luz.

Henry Miller disse que "Um destino não é um lugar, mas uma nova maneira de ver as coisas". Justificaria antes, como sendo um ‘local’ de esperança!

Com os olhos e o coração no céu, envolta por árvores e silêncio, o calor dos dias escurece, ressurgindo em lua morna… Ali, a vista parece infinita, sem obstáculos para transpor.  

Ele e eu sentámo-nos no exterior, que também poderia ser o interior… As paredes de vidro eram o agasalho do tempo…


E se os anjos caem do céu, também podem cair nas mais peculiares formas de vida… Em última instância, é de vidas que precisamos para nos sustentarmos diariamente.

12 setembro 2013

Conto - Silêncios Interrompidos


Descrição: 
Pegue-se numa árvore, nas suas ramificações, nas suas rupturas... Resultado? Um cruzamento de vidas cujos silêncios vão sendo automaticamente interrompidos!

De costas voltadas, vejo Clarisse desaparecer. Silhueta curva, semblante negro recortado. Um rosto outrora destemido, agora distorcido da juventude que há muito ficou para trás.
Traz uma impertinente tristeza plasmada nas rugas que lhe marcam o tempo. Muito tempo. Uma vida de trabalho caseiro, um suporte incondicional dos filhos que nunca fugiram de perto da sua saia ou, saias. (Se se subentender que antigamente era mais do que uma, entre saiote, saia, forro, bata ou avental…) E, nos intervalos da lida de casa, sempre teve tempo para atender aos pedidos de emergência que estes não conseguiam dar resposta. Deu sempre uma mão, ou até mesmo as duas. Nunca se recusou à faina, demonstrando sempre o máximo sentido de responsabilidade e uma vontade muito genuína, altruísta, em querer somente ajudar.
Vale-se da valentia inusitada da figura Mulher. Não há género que compense as vidas que trazem ao mundo!
Carregou no colo dois filhos, Leonor e Simão. Posteriormente, os filhos destes, Carlos e Miguel, respectivamente. Diz que “há-de morrer” sem ver uma nova geração, mas mantém a vaga esperança que um dia os irá embalar junto ao peito, porque no coração já se encontram. “Quem espera sempre alcança.” E é nessa forjada persistência, que surge sempre apaziguadora e paciente perante as contrariedades da sua existência.
 Não se cansa facilmente, apesar das forças e a saúde começarem a não corresponder. As pernas já não a transportam, arrastam-na. Assim como a vida lhe arrastou os cabelos que se cobriram de branco.
Leva os chinelos, as meias de algodão por cima da meia-calça canelada, a saia e o avental. Cobre-se do tempo com um agasalho negro, quando tudo o resto se esbate em tonalidades que gradualmente vão dar à escuridão da noite – o preto ou aos dias cinzentos, que em xadrez, sempre se manifestam inanimados.
Falta-lhe luz. Falta-lhe o brio. Faltam-lhe dentes, que a impedem de sorrir. Simplesmente, a idade já não lhe pesa tanto. Encarou-a sempre com sentido de missão. Uma missão que já não a deixa apressar os passos, dada a afasia constante do tempo que corre… Por enquanto, o relógio tem sido permissivo.
Perdeu o homem da sua vida, ou melhor, com quem partilhou a vida. Nunca se chega a perceber o que representam tantos anos de casamento, quando se vão somando décadas (decadentes)?! O segredo nunca revelou.
O marido era robusto, um pouco sisudo, quando se encolerizava, cuspia a prótese… Ficando ainda mais desprovido de argumentos. Mas para ela era o fascínio de amor que se lhe lia nos olhos. Terno e apaixonado, Clarisse era a ‘menina’ dos seus olhos, sempre foi, mesmo quando a visão o começou a atraiçoar. A idade tem destas emboscadas, imprevisíveis esperas, entre partidas e chegadas. E enquanto se vê partir, poder-se-á ficar apenas com a saudade das vozes e das gargalhadas sempre familiares. O dia mais negro será aquele em que a memória esquecer de replicar os pormenores de vida vivida em comum. Será esse o ‘Adeus’ mais profundo.
Vivia na ‘margem sul’ da Rua Direita, quem desce, da serra para o mar. Uma casa construída a preceito, com vista para o mar.
De risada fácil. A sua passagem era sempre majestosa. Nunca ninguém ousou ficar-lhe indiferente. Os cumprimentos de circunstância tinham outra cor. Representavam muito mais do que um mero gesto de cidadania. “Se” mais gente cultivasse o sorriso, a gentileza, a cortesia, certamente que o mundo seria um sítio menos desumano. Porém, a conjunção subordinativa condicional assume-se cada vez mais como uma dependência de vocabulário e defesa do incontrolável, do que um fim último, derradeiro.
Uma dualidade se avista. Se por um lado há gente totalmente incapaz de fazer girar o mundo, por outro, há gente capaz de tudo, e é esta miscigenação de ‘gentes’, que faz com que o sistema se descontrole, se desumanize, se descredibilize.
Um dia, Leonor, sempre muito próxima da matriarca e martirizada pelos ‘diabinhos invisíveis’, como alegremente se dirigia aos diabetes e colesterol de que padecia, proporcionou-lhe um momento único, uma espécie de incumbência, que só podia ser confiada a alguém por quem se nutre um tão incondicional amor, um olhar atento sobre os que eram seus: o marido Francisco, o neto Carlos, a nora-neta Lídia e a bisneta que vinha a caminho, a pequena Luísa. Enternecida, com a boa-nova, não deixou a melancolia falar mais alto. No seu íntimo, percebera que Leonor estava a despedir-se e a entregar-lhe as vidas, que como a sua, lhe começavam a escapar. O único fim incapaz de ser adiado estava próximo. As doenças silenciosas não passam duma crueldade a velocidade cruzeiro…
- Não estou a afastar-te ao mandar-te embora. Estou a libertar-me! Dissera-lhe Leonor, quando a medicação apenas aumentava a vulnerabilidade de quem apenas respirava e se movia lentamente.
A batalha de emoções de Clarisse voltara. Mais um atentado à sua capacidade de resistência se avistava, da pior forma. Até podiam dizer-lhe que o futuro estaria escrito nas cartas… Faltaria saber se nas ‘escritas’, nas de ‘jogar’ ou nas que ainda não haviam sido nem escritas, nem jogadas. Ser-se visionário nestas matérias será sempre discutível. Há questões que com o tempo e por serem repetidamente equacionadas, se perdem numa resposta que de tão corriqueira imprevisibilidade, já não se suporta verbalizar. Era este o convívio generalizado daquela velha alma.
Há uma semana, Clarisse tivera um sonho. Não lhe dera grande importância, pois de todos eles se acorda... Há quem diga que um sonho que não se interpreta é como uma carta que não se lê… As premonições vêm sempre das mais perversas maneiras. Porém, nem sempre a intuição as acompanham ou na dúvida, as querem acompanhar. A imprevisibilidade de acontecerem, dotam-nas de uma incerta animosidade…
Viver é das únicas coisas que não podem ser deixadas para depois. E quando alguém se depara com um fio de azeite de vida, escorrem as dúvidas…
- Estou a perder-me aos poucos. Dissera Leonor à mãe, na tentativa de ser mais directa. Não conseguia falar do ‘assunto’ abertamente. A fraqueza corroía-lhe os membros. Não sabia se estaria por meses, dias ou até mesmo horas, a verdade é que a presença da Mãe fortalecia-a em todos os sentidos. Tanto assim era, que lhe dissera:
- Não temas arriscar. Quando um barco avança, ele equilibra-se.
Toda a vida de Clarisse fora marejada de lágrimas sentidas, um barco ao sabor do vento, numa rosa-dos-ventos, atroz e agreste. De uma coisa estava certa, a vida tornara-a modestamente resistente a qualquer embate. Este seria apenas mais um.
Do alto da sabedoria da idade, aquiesceu a cólera. A disciplina autonomizava-se nela. A sapiência da idade traz essa acalmia, muito embora, a revolta interna teimasse em resistir a lidar com mais uma perda.
A vida não passa de uma miríade de silêncios interrompidos... De uma (de)gradação degenerativa extremamente complexa.
O tempo agudiza as vidas de espera ou as esperas de vida… O que quer dizer que seja dum lado ou doutro, não é fácil vestir a pele.
- Sinto-me um nada no vazio de uma bolha…
Concluía Clarisse, impotente contra a adversidade. Os ciclos são renováveis, mas falíveis. Tudo se transforma. Nada é estático, mas a dúvida do timing permanecerá sempre como uma imprevista interrogação.
Na verdade, o tempo vai passando como o ar entre os dedos, mas parece que não escolhe Clarisse. Sem eufemismos, será que os velhos ainda têm sonhos?
- Embala-me os sonhos. Embala-me a vida até que ela deixe de me acompanhar. Já não me faz falta. Aliás, aquilo que me faz falta já não me pertence, não consigo tocar e, as forças que acalento já não têm a mesma intensidade. Deve ser essa a velhice, mais ingrata. Tenho aguentado tudo de forma estoica. Já não concebo o jargão ‘depressão’, apenas uma tristeza visceral que se vai renovando. Assim, como “o amor é um pássaro que gosta de ser livre. Ele precisa de muito espaço para voar…” (OSHO) E eu já não tenho tempo, nem espaço. Entrei na bolha do meu vazio, da minha solidão, que a cada dia que passa é mais asfixiante, mais austera, mais triste.
Clarisse estrebuchava, numa manifestação abrupta de cólera contra a sua mais constante condição ora de queda, ora de ascensão. Um jeito de vida que foi construindo, ou simplesmente, absorvendo… Resfolgando espaçadamente, a matriarca apropriava-se das palavras sábias de Robert Lynnd, “no que se diferenciam os pássaros do ser humano é na sua capacidade de construir, mas deixando a paisagem como estava.” E de seres humanos percebia ela bem, numa psicologia adquirida na escola da vida.
- Se há deuses, coisas, sentimentos, para termos fé… andam todos muito desfasados das nossas preces. Sinto-me uma indigente que reclama: paz! No limite, sei que até é possível sobreviver a todos os contratempos desta vida, simplesmente a sobrevivência não é propriamente sinónimo de vida. E ser ou não ser o sustentáculo de várias vidas começa a ser um exercício penoso. Aliás, apesar de ir ao sabor do vento… A minha realidade é inegavelmente de contínua anulação pessoal, não que a faça contrariada, mas assim será até as coisas estabilizarem, outra vez, até que recomece um novo ciclo. A fé no dia em que as coisas vão melhorar tem que ser contínua. A distância desse dia é sempre uma incógnita, uma ilusão que se vai replicando nas expressões “um dia de cada vez”, “uma hora de cada vez”, “uma vida de cada vez…” E nesse intervalo, a solidão vai sendo a companhia que se reconhece como a mais presente, a mais próxima, num incomensurável silêncio interno interrompido. O importante é que não haja desvios nas intenções do coração…
E o seu instinto era o de uma força da natureza, onde a sua inspiração tinha uma fonte: a vida das naturezas que pousavam suavemente nas suas mãos e que segurava com a vida.
A árvore da vida vê passar muitas outras histórias, que vão repousando na sua sombra. A dimensão que atinge, ignora quem lá está e porquê… O seu fim último é abrigar, por isso é que à Natureza chamam Mãe.
- Temos tanto amor para dar. Há tanta gente para o receber, não nos envergonhemos de o sentir! Há vidas que não se cruzam com a nossa por acaso. Constatava.
- É por isso que a idade tem a clareza e a resposta célere. Já não há mais dimensões para medir palavras. Há que genuinamente proferi-las. Porque se há os que cantam o fado, há os que o vivem diariamente.
A sua idade cumpria o desígnio da sabedoria e tranquilidade tão consequentes. Os anos empacotam muita coisa… Não apenas as materiais… Fartava-se de repetir.
- Deus me dê muito e eu que me satisfaça com pouco…
Era essa característica que a distinguia dos outros que vivem da idade que passou.
Clarisse acertara o relógio pelo mar. As manhãs serão perenes de reencontros, de cumprimentos, de braços estendidos, de breves passagens, de afinidades que crescem dos contactos de impessoalidade. O tempo define quem fica, quem parte…
Voltam-se as costas e de novo surge a sorrir. E um sorriso devolvido não tem preço. A alcofa vinha embrulhada de esperança, com Luísa. O dia era de encantamento com aquela pequena presença, que tanto a preenchia. A visita vinha acompanhada de papoilas coloridas que tanto a alegraram.
O almoço foi prolongado e recheado de histórias e recordações. Não se saiu da mesa e já escurecia… Lá fora, chovia. Lá dentro também…
Pela janela, esquecida aberta entrava uma brisa de terra levemente molhada que exalava o odor quente que as suaves gotas de chuva tentaram esfriar… Que mistura genuína de poderes ancestrais, abafada pelo calor dum tempo que não se define, apenas se transcreve instante a instante.
E felicidade é isto… A percepção exacta do que os sentidos alcançam e que tantas vezes se desperdiça pelo descuido desatento de detalhes únicos…
Momentos de evidente captura, alocados na viagem que fazemos, sempre que nos prestamos a sentir o chão que pisamos e o ar que respiramos.
Ao passo que trespassava momentaneamente para o ‘outro mundo’, aquele desacordado, desliga-se o cérebro. E, as vidas que deixaram de existir, depressa não passarão de ténues sombras passageiras. “A vida é uma dança na corda oscilante do inesperado”, alguém disse, provavelmente intimidado pela presença ininterrupta de algo sempre em falta. Somos seres penitentes de uma inesgotável ausência.
Esta busca e confissão de sensações. Esta vertigem que embala os sentidos… Leva a pensar que a vida fora daqui talvez tenha os seus desencantos. Mas estes efémeros momentos de puro feitiço e abstracção são cada vez mais imprescindíveis.
Junto a Carlos, Lídia e Luísa, a comoção escorria-lhe pelo rosto. A felicidade tem os seus momentos. Quanto à durabilidade destes, a que quisermos…
Sempre atento e descontraído, Carlos pergunta-lhe:
- Estás a chorar porquê? Quem foi que te bateu?
- A vida. Retorquiu.
- Mas a vida não bate em ninguém…
- Isso é o que tu pensas! Contestara.
Carlos viera ao seu encontro sem palavras... E, as palavras tornam-se desnecessárias quando a intimidade se estabelece.
Foi o grito da alma que os cruzou. Foram duas formas de vida que se cruzaram... A distância será sempre a mesma que os separa... Separou... Também, foi o mesmo silêncio que os aproximou...
Na unívoca simplicidade viverão à parte. Sós. Mas trar-se-ão um no outro ou um ao outro pela eternidade...
Carlos andou desligado da família, porque não entendia muito bem o conceito até ter uma. Pensava que eram elementos que estariam sempre presentes, até a vida lhe ter ensinado que os imprevistos são sempre a parte mais previsível do sistema!
Nem sempre as vidas se cruzam no tempo exacto de serem partilhadas, mas quando o são, que o sejam na plenitude.
Do alpendre, já só, mirava o horizonte que se mantinha longínquo, o anoitecer ia enterrando mais um longo dia…
Todos os dias mais um definha para que no dia seguinte possa renascer de novo. É assim que o tempo se vai consumindo… até porque no fundo, tudo é definitivo até mudar!
E o tempo faz acontecer a vida. 
De vida apagada não vivemos.
Milésimas de segundo mudam vidas.
Vidas passam para segundo plano.
E tudo tem o seu tempo de acontecer.
Se a inevitabilidade o predisser…

FIM