02 agosto 2007

Histórias e Encontros com a realidade...




Tempo de Mudança…

Outro dia, em conversa com o meu pai percebi o porquê deste tempo estranho e indeciso…
Segundo a minha avó e a sua sabedoria popular, ela dizia qualquer coisa como: Deus disse que quando o homem pensasse saber mais do que Ele, que lhe trocava os tempos!
Parece que é o que está a acontecer… as estações confundem-se… como muitas outras coisas…
Vivemos o caos discreto duma sociedade que não se impõe por regras, mas por delírios evasivos cujas respostas e regras são ditadas por recalcamentos que já não fazem sentido…





«Os outros»

Tinha quatro anos e meio e referia-se a eles como os ‘outros’. Era ainda uma criança, mas já tinha sofrido a tristeza de ter sido abandonado pelos pais biológicos (‘os outros’)…
Depois da adopção reconheceu as palavras pai e mãe e ainda os afectos da avó que se entregou de corpo e alma àquela dádiva. Àquela bênção.
Tão tenra idade e já sabia quem o fazia feliz…
Essas pessoas tinham nomes.
Tinha entrado numa verdadeira família… apenas não esquecia os avós da parte ‘dos outros’… que lhe foram afastados pelos ‘outros’.
São estes os dons das crianças…
Criam laços…
Junto do Amor que lhes é dado!





Almas caídas…

São vultos, almas, esqueletos até…
Parecem esquecidos à margem de tudo.
Caminham, rastejam, vivem num outro mundo…
São velhos ou estarão velhos?
O seu espírito estará mais perto ou mais longe da realidade?
Vivem num outro mundo.
Um mundo qualquer…
Já pouco ouvem as vozes da vida…
Cambaleiam… magros, gordos, senis, trôpegos, com idade ou sem idade…
Já não se chamam velhos do Restelo, pois já não têm voz para gritar o que a idade lhes deu: inconformidade e melancolia.
São os loucos de amanhã…
E dão os primeiros passos hoje.





Filha única

Lígia era filha única. Tinha pouca idade mas já falava como ‘gente grande’.
Trazia um vestido azul bebé com uma boneca enorme.
A bolsa a tiracolo, o cabelo negro curto e os óculos em arame preto davam-lhe a suavidade doce, duma miúda encantadora.
No rosto tinha a expressão habituada da solidão.
Chegou junto a mim retraída.
O seu pai deixara-a ao pé de mim e dos meus bonecos.
Alguns viriam a ser seus, mais para a frente.
Disse que me queria ajudar a vender, porque gostava de ajudar os outros.
Predispus-me a ouvi-la e ela contou-me tudo o que conseguiu dizer nos instantes em que o pai se ausentara.
Era tímida, mas bastou pô-la à vontade para me contar o mundo que a acolhia dia-a-dia.
Confessou que adorava ter uma irmã para poder brincar e ensinar-lhe muitas coisas…
Ouvi-a com a satisfação de ver uma criança feliz, dei-lhe toda a minha atenção. E isso bastava-lhe.
Era vulgar Lígia aguardar o pai, enquanto ele trabalhava.
Uma rotina que a deixava aborrecida.
O pai da pequena Lígia regressou.
Logo quando ela estava apegada à minha companhia.
Era tempo da despedida.
Agarrou-se ao meu pescoço e deu-me dois beijos.
Tinha ganho uma pequena nova amiga…
O pai ficara surpreso por aquela atitude espontânea.





Número três inoportuno…

Maria estava desanimada.
O rumo da sua vida tinha tomado todos os rumos que nunca julgara que pudesse ser possível alcançar.
Era mais uma visita à sua filha, de 32 anos, paraplégica.
Que na sexta-feira seguinte regressava a casa…
Abeirou-se de mim…
À procura dum ombro ou até mesmo dum desabafo com alguém desconhecido. Chegou a pedir desculpa, pelas confidências…
A voz de Maria era sumida num choro contido.
Os seus olhos lacrimejavam enquanto contava o drama que a sua vida se tornara.
Esta mulher sofreu grandes perdas…
O seu karma era trágico.
O pesadelo começou quando à sua outra filha foi diagnosticado um cancro genético por parte do marido. A rapariga, com o sistema linfático minado pela doença teria um fim rápido.
O pai de Maria, médico, foi quem lhe deu a notícia que a filha tinha pouco tempo de vida. Já não havia mais nada a fazer, senão ser forte e oferecer todo o carinho possível e imaginário à jovem que viria a falecer aos 21 anos.
Não refeita da perda, três anos depois, é o marido quem a abandona abalroado pela doença vil genética. O número 3 estaria ainda presente, porque tinha falecido três dias depois da sua filha mais velha completar 27 anos. Era Natal, mas foi a infelicidade quem bateu à porta.
Maria olhava-me com tristeza da sua sorte e levara uma boneca de trapos com tranças amarelas para oferecer à sua ‘pequena’ de 32 anos…
Comentava que ia levar simbolicamente naquela boneca a irmã que já tinha partido… para lhe fazer companhia…
Maria encontrou um subterfúgio no amor aqueles que lhe restam.
Teve o pulso para pegar no leme e nunca abandonar o barco…
Pediu desculpa pelo desabafo, disse que eu não tinha nada que a estar a ouvir…
Tirei uma lição:
A tristeza e a perda são grandes demais, para a impaciência dos caprichos…
Como diz a canção: ‘A vida é tão curta… tão rara…’





Dá que pensar…

Entrou.
Estava calado.
Devia ter aproximadamente 8, 9 anos não mais.
Trazia a mochila às costas, rumo à escola.
Sentou-se no primeiro lugar disponível no autocarro.
Na paragem, enquanto aguardava o autocarro havia dito a outros passageiros que ia visitar e falar com o pai.
Algumas paragens à frente, o miúdo saiu todo satisfeito ao encontro do pai.
Apesar de toda a satisfação do menino, o pai já tinha partido, ainda jovem, há cerca de um ano devido a doença grave.
Antes das aulas, a criança passava religiosamente no cemitério para falar com o pai.
Ele dizia, que conversavam e brincavam muito… os dois.
Respiro fundo e só consigo pensar que:

A vida é mesmo como um autocarro.
“Fora o motorista, é tudo PASSAGEIRO…”
Há que aproveitar a viagem…



«A vida não é medida pelas vezes que respiramos, mas sim pelas vezes que nos tiram a respiração ...»

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