26 setembro 2012

Murmúrios...

A tarde trouxera a escuridão que se transportava para a noite que se anunciava temperada, arrefecida.

Na mente, abre-se uma brecha no tempo que a transporta pela procura. De quê? Diz-se que: “Quando procuramos descobrir o melhor nos outros, de alguma forma descobrimos o melhor que há em nós mesmos.” Descobertas à parte, a tendência é procurar ‘o melhor’ sem que se note que ‘o pior’ é descaradamente descurado, e que invariavelmente, ele lá se dispõe a aparecer! Até onde vai a admissibilidade desse ‘pior’ e quando é que ele surge? Quantos egos chocam na mais evidente imperfeição humana…

A competência para apaziguar é uma dádiva. É a quietude do espírito que ameniza qualquer distúrbio mais intempestivo que se aloja momentaneamente e se esvai sem resposta concordante, na versão mais complacente.

Não são momentos estanques ou alternativos… São antes, repercussões internas, reprimidas, que se alojam numa dinâmica passiva e que ao desbarato se esbatem nas paredes da boca e regurgitam em voz displicente, quando não contida.

O julgamento será alguma vez um ponto de partida ou chegada? Não. Será ainda o grande exclusivo dos tribunais, que não sendo grande termo de comparação é o único real que subsiste!

“É preciso ouvir os apelos silenciosos que ecoam na alma da pessoa.” E o que está escrito na alma é difícil de decifrar e aquiescer. É um acesso estritamente reservado. Poucos o conseguem invadir, interpretar. São silenciosos apelos inconscientes, perturbadores, afectuosos, melindrosos, inacessíveis, alcançáveis, que se podem ousar tocar em jeito de partilha retraída.

É na visão que construía dos outros que se espelhava e se desvendava ao mundo. O que os outros viam? O que os outros pensavam? Não passavam de transcrições polissémicas. O absolutismo que se abarca detentor da sapiência máxima tem dessas coisas, ou quiçá, coisa nenhuma. É uma questão de relativizar ou suavizar os murmúrios da sabedoria sobre a essência de cada um e para isso não há limites.

24 setembro 2012

São meras palavras...


















E toco nas palavras enformando-as como um arco-íris que aparece e desaparece num ápice. Reflexão que não chega a alcançar a memória. Palavras desconstruídas que se alinham em labirinto inconsciente com a consistência natural da autenticidade.

Essa vida autónoma endemoniada segue só e (re)aparece quando a inspiração flui inqualificável, inquantificável, deserta, superlotada, ensaiando manifestações de papel e caneta ou os automatismos tecnológicos mais rebuscados.

As palavras rendem-se à vida que nelas habita, a sós, acompanhadas, precedidas, complementadas, gerando uma polissemia discreta, única.

É na transversalidade das palavras que significam que se encontra a capacidade de metamorfose, ao ritmo da inquietude das mentes que as levam… O seu dono, impávido e sereno, deixa-as voar em liberdade.

Existirá uma métrica com dono?

Como soa o protesto das palavras não usadas?

As escolhas são tão restritas quanto a ordem de um inconsciente voluntário “pseudo-amestrado”.

Escrevo, o que talvez articularia em fonia.

A voz tem o som de palavras que (en)cantam e comunicam vida. Fala do indizível, do horizonte que nasce e nunca morre perante as luzes que caem no seu leito e fazem o dia anoitecer.

É nesse naufrágio que mergulham e adormecem as palavras que folgam a magia de viver dentro de um sonho.

20 setembro 2012

A luz que se escorre na água



















Apagou-se a luz. Aquele véu de insegurança translúcida castrou-se.
O sol (im)pôs-se naquele dia, como em todos os dias em que se exibe majestoso. Foi uma imposição temporária. Também já era seu hábito.

A compleição da imperfeição tem na mãe natureza todo o seu expoente máximo. A beleza tem dessas coisas. Serve para enriquecer quem a encontra através da contemplação, assim como é nula para quem passeia cego na vida.

Talvez a versão optimista veja a graciosidade das coisas, ao passo que a pessimista se obriga a torná-las invisíveis. E o invisível é um vazio enorme que se sustenta por si só.

Criam-se vazios gigantes. Morre-se antes de viver. Incorre-se na lamúria gratuita que se esbate na sombra de quem assim quis viver e desistiu, prontamente.

Diz Shakespeare (em "Vencer se Possível, Desistir Nunca") que:

“As falhas dos Homens eternizam-se no bronze,

As suas virtudes escrevemos na água.”



06 setembro 2012

A Vida é ‘Velha’!


Duas horas de sono e aí vai ela, rumo a uma viagem que podia ser um mero passeio, mas não, tratava-se de uma excursão de jovens pertencentes idades nobres. Muito nobres.

Entre os esgares de desconfiança, contemplação ou surpresa, vinham um a um, pé ante pé, como se os ponteiros marcassem os seus ritmos, em segundos espaçados dum relógio analógico.

Diziam que iam essencialmente (con)viver, pois o normal é passarem pelos dias apenas existindo e lutando contra um tempo que escorre a conta-gotas. A solidão preenche-lhes o tempo dos dias, que parecem enlutados e cinzentos. E a vida, a vida é sempre mais velha. Há que preenchê-la, organizando-a suportavelmente diante do arco-íris profundo e equilibrado dos dias.

Às 6.30h em ponto, a hora marcada, chega a menina e moça que mal abre os olhos de tanto sono acumulado. Corina Maria era assistente social e juntava-se ao grupo para prestar o seu auxílio, enquanto voluntária.

O autocarro onde seguiria, já aquecia, parado. A ordem foi dada para entrar e a voluntária deixou que todos entrassem naquele autocarro, para depois ficar com algum lugar que restasse. O conforto dos acompanhantes e a sua acomodação era um desígnio. Com tão pouco tempo de sono, a menina sabia que adormeceria rapidamente, mal o autocarro se fizesse à estrada. No caminho, Portugal ficaria para trás e atravessar-se-ia para uma curta visita ao outro lado da fronteira, Espanha.

Os três autocarros abalaram. Corina abandonara-se de imediato ao sono que a cirandava. Nem uma hora decorrida de viagem e eis que é despertada para um pneu que rebenta em plena auto-estrada. Astuta e ágil saiu para ver o que se passava. Felizmente, fora um mero pneu traseiro, que não causara mossa nenhuma, a nenhum dos ocupantes. Para não se perder tempo na viagem, alguns dos passageiros foram distribuídos pelos outros dois autocarros. Ela foi também.

Dos lugares vagos, a escolha não era imensa, mas mesmo assim acomodou-se ao lado do Sr. Manuel, largado pela viuvez. Afável, como só ela, o sono havia ficado para trás, junto daquele pneu rompido. Cortando, o silêncio, o Sr. Manuel disse para um casal que ia na sua frente, “os jovens não querem ouvir os velhos”, prontamente, a ‘intrometida’ menina responde que queria! Levou de imediato com uma aula de geografia que contava os outros caminhos transversais à auto-estrada. Manuel era natural do concelho de Amares, Braga. Disse ele que nascera no rio – o Cávado – há muitos anos atrás. Confidenciou-lhe que na sua infância não saiam da água do rio e que talvez por isso, até hoje não saiba ler.

Passada a fronteira, havia uma terriola muito próxima, cuja padroeira era a Imaculada Conceição. Na igreja, houve uma pequena celebração eucarística, à qual a maior parte dos idosos não quis faltar.

No final, a Avé-Maria ecoava majestosamente naquela abadia. E, a dona Maria Odete abraça-se e dá dois beijos a Corina, pois esta tinha-a acautelado e ao marido para uns bancos que não ofereciam grande segurança, e diz-lhe: “Muito prazer, em conhecê-la”, em lágrimas. A menina comoveu-se. Num ápice, apresentou-lhe o marido. Tinha-se dado mais um enlace de amizade.

De regresso à companhia do Sr. Manuel – ele que disse que não deixava o carro partir sem Corina – e na espera pela partida, a menina escuta a incredulidade: “Ontem tocou o sino!”. – Dizia a senhora do casal que seguia na frente dos dois, enquanto tentavam achar a resposta menos óbvia possível. Enquanto a dúvida pairava equacionavam-se algumas hipóteses. “A esposa já faleceu e ele foi para o hospital, estará vivo ou morto, terá sido ele?” Não houve respostas conclusivas, no entanto, eram transparentes aquelas incertezas, conversas de quem nada espera dum tempo em ‘reduzido’ contra-relógio.

As farpelas ou roupas de ‘domingo’, os sapatos novos ou o farnel exibiam-se imodestamente. Mesmo assim, por detrás de toda essa confiança, por diversas vezes a idade impacientava-se! [E de que maneira!]

Sempre que se desloca ao estrangeiro, a assistente social, recorda sempre as palavras de desânimo do seu professor de faculdade, que uma vez numa aula tornou pública, a decepção que teve na primeira saída do país. Ao que parece, do outro lado da fronteira, era tudo mais ou menos igual. Neste caso, só se ouve falar ‘estranho’! Sorrindo, ouve quem coincidentemente lhe lera os pensamentos. “Afinal isto é igual a Portugal. Não vale a pena vir a Espanha”, disse o Sr. Manuel corroborando, a anterior tese do professor.

O dia estava tão cinzento, que as gotas de S. Pedro acabaram por cair… Mas mal se ouviam. A banda sonora do autocarro tinha música! A banda sonora tinha um ritmo de canção popular portuguesa! Com interpretação feminina. Instrumentos principais: acordeão e pandeireta. Podia dizer-se que como presente estava o cantor Nelo Silva, que a música pertencia à filha Cristiana, mas Corina, não quis pertencer ao grupo da ‘má língua’, por um lado porque não sabe se a filha ainda canta e por outro, porque não reconhecia o reportório da criatura nem de fio nem a pavio! O Sr. Manuel ainda comentou se não seria a Mónica Sintra a cantar, mas a dúvida ficou no ar, mesmo tendo a mesma cassete ou CD rodado pelo menos três vezes.

Pelas amplas janelas via-se a baía de Vigo, qual cenário idílico de paraíso que se avistava! O tempo tinha aberto. Vigo continuava em forma.

Chegou a hora do almoço, já em Portugal, numa Quinta, em Vila Praia de Âncora. A confraternização ia durar, além da comida que ia sendo servida. Em simultâneo, havia música para ‘bailar’. Corina teve vários convites para dançar, mas não aceitou nenhum para ninguém ficar triste. Eram muitos candidatos! E o ‘peso’ do sono, ainda nela pesava, passe a redundância.

Quando foi conhecer a quinta, o ar puro trouxe-lhe um dejecto de ave… Não se percebe muito bem porque é que os passarinhos se aviam com tanta liberdade e quem anda cá por baixo está sempre a jeito e sujeito!

O convívio durou até ao entardecer e era evidente a satisfação que não se consegue esconder, por mais que se queira, aqueles diálogos imprevistos, as conversas tontas, as histórias que se reencontravam e ganhavam de novo vida nas suas vozes, as dores da alma que se esvaziavam. E os sorrisos no rosto gritavam liberdade, depois da opressão de sabe-se lá quantos dias ou meses de isolamento… (E, quantos mais viriam?!)

“Um sorriso é a curva mais bonita no corpo de qualquer pessoa.” Ali, a tese pôde comprovar-se! Um dia admirável, para aquela menina que subiu as escadas do autocarro a correr para se despedir do Sr. Manuel. Iam regressar a casa. E ela já podia voltar no autocarro que inicialmente lhe estava destinado. Já estava arranjado. E sim, o Sr. Manuel não ia deixar o motorista partir, sem ela.